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A escultura e as crenças religiosas

A escultura e as crenças religiosas

 

Desde que o Homem existe enquanto ser consciente, os seres humanos tentam compreender o mundo em seu redor e as forças responsáveis pela sua criação e manutenção, tanto no domínio físico – através da ciência –, como no metafísico – através da religião e da mitologia. Desde as crenças primordiais, que veneravam os espíritos e a natureza, até aos cultos poli e monoteístas atuais e passados, os homens e mulheres de todo o mundo tenderam e tendem a acreditar em entidades sobre-humanas e a dedicar-lhes orações e oferendas de modo a terem uma vida com circunstâncias mais favoráveis (antes e depois da morte).

     A arte é outra das práticas que é intrínseca à consciência humana e é importante não apenas pela sua beleza, mas também por algo bem mais objetivo – a sua utilidade enquanto meio de expressar uma ideia. Como se costuma dizer, uma imagem vale mais do que mil palavras. Não é que as palavras não sejam importantes (como escreveria eu este texto sem palavras?): trata-se simplesmente do facto de a imagem demonstrar muito melhor – isto é, de forma mais compreensível e imediata – bastantes informações. Além disso, a arte é anterior à escrita. Considerando isto, torna-se natural que, desde a génese da arte, esta tenha estado associada às crenças sobrenaturais.

     Uma dessas formas de arte é a escultura. A sua utilidade para os cultos humanos surge sem grande surpresa: pode tomar proporções pequenas, servindo de amuleto, ou monumentais, representando a grandiosidade divina, para além de apresentar uma durabilidade muito superior à de outros tipos de representação artística, graças aos materiais usados na sua conceção. Com efeito, a escultura constitui (a par com a olaria) a maior fração do património artístico das civilizações antigas a chegar aos nossos dias – e muitas das obras têm como temática a religião e o sobrenatural.

     Os exemplares mais antigos de escultura associada a crenças sobrenaturais remontam ao Paleolítico. As estatuetas de Vénus (como a célebre Vénus de Willendorf) são um ótimo exemplo: estas pequenas esculturas, maioritariamente encontradas na Europa e representando normalmente uma mulher redonda com caracteres sexuais e ventre de grandes dimensões (à semelhança de mulheres grávidas/férteis), eram, segundo as teorias mais consensuais, símbolos de culto à fertilidade. Contudo, outras teorias apontam-nas ainda como representações de uma deusa criadora – por oposição à tradição cristã que tende a retratar Deus como sendo do sexo masculino. Em boa verdade, será muito difícil descobrir qual o verdadeiro simbolismo das pequenas esculturas, dada a ausência de qualquer registo escrito, mas indícios da utilização de ocre em algumas delas sugerem que fossem objetos sagrados, dado que este pigmento era usado noutros rituais.

     Ao longo dos tempos, a escultura foi evoluindo, mas a sua ligação à religião manteve-se, como provado pelas civilizações que, ao longo da Antiguidade, floresceram no Mediterrâneo. Os egípcios são um exemplo notável, com esculturas monumentais conhecidas por todo o mundo – merecendo a Grande Esfinge de Gizé um lugar de destaque. Esta estátua, com cerca de 20 metros de altura e mais de 4500 anos de idade, representa uma figura mitológica com corpo de leão e cabeça humana, sendo que se acredita que a cara representada é a do faraó Quéfren (lembre-se que os faraós tinham estatuto divino). Várias teorias consideram que o monumento seria um local de culto ao Sol e, mais tarde, ao deus egípcio do Sol, Hórus. A influência da Grande Esfinge não se limitou, contudo, aos egípcios da Antiguidade: estendeu-se mesmo até ao domínio islâmico, com os egípcios muçulmanos a tomarem-na como uma espécie de talismã. Na escultura egípcia há ainda a destacar estátuas e baixos-relevos de deuses e faraós.

     Os gregos eram outro povo exímio na escultura, e a mitologia era um dos seus temas prediletos. As estátuas dos mais variados deuses e cenas mitológicas eram ornamentos indispensáveis nos templos gregos. De salientar o Templo de Zeus, que continha esculturas nas métopas e ainda uma colossal representação de Zeus que era uma das sete maravilhas do mundo antigo.

     A escultura grega viria a influenciar a dos romanos, que, para além do já mencionado uso em templos, recorriam à escultura como meio de decorar os seus sarcófagos (outro indício da importância desta forma de arte para as crenças humanas). Mais tarde, os vários povos europeus cristãos (em especial os católicos) viriam a utilizar a escultura para ornamentar igrejas e catedrais, sendo este um importante meio de dar a conhecer os episódios bíblicos à população maioritariamente iletrada (uma imagem vale mais do que mil palavras, lembram-se?).

     Deixemos agora, e até à conclusão do meu texto, a perspetiva eurocêntrica que, irremediavelmente, reflete a nossa visão do mundo e olhemos para outros exemplos não menos ilustres da associação entre escultura e religião.

     Na Ásia, existem numerosas esculturas monumentais de Sidarta Gautama – ou, como é mais popularmente conhecido, Buda. Estas estátuas podem ser encontradas numa extensão impressionante de território – do Afeganistão ao Japão, passando pela Índia e até pela Indonésia – e, como tal, envolvem, inevitavelmente, uma percetível variação do estilo, desde os Budas do período Gupta (caracterizados pela influência grega resultante da invasão de territórios na Índia por Alexandre Magno) até ao Buda de Ouro (sim, o nome é literal) de Banguecoque. Para além de esculturas budistas, a Índia, enquanto território de riquíssima variedade de credos religiosos, conta ainda com estátuas e baixos-relevos hindus e jainistas, que variam entre o mais ínfimo pormenor de uma coluna ou de um portal até ao mais imponente avatar.

     O povo Rapa Nui, que habita as Ilhas da Páscoa, no oceano Pacífico, é responsável por uma das maiores proezas da escultura: os moais. Estas estátuas – que podem chegar às 86 toneladas – representam figuras humanas com cabeças desproporcionalmente grandes. Os moais representam os antepassados deificados do povo Rapa Nui, sendo uma demonstração de poder mas também importantes talismãs para os locais, visto que se acredita que contêm os espíritos dos antepassados. Até hoje, mantém-se o mistério quanto a como terão os Rapa Nui conseguido transportar os moais, tendo em conta o impressionante peso das estátuas e a tecnologia limitada de que o povo dispunha.

     No continente africano, a escultura é maioritariamente em madeira, com destaque para as máscaras tradicionais. Estas máscaras, que influenciaram movimentos como o cubismo, desempenham um papel muito importante nas cerimónias e rituais religiosos e espirituais de vários povos africanos e podem ter temas como animais, a beleza feminina ou o culto aos mortos. Um raro exemplo de escultura em pedra são as Aves do Zimbabué, que foram achadas nas ruínas da antiga Cidade do Zimbabué. Acredita-se que a dita ave fosse um totem (um animal sagrado que serve de símbolo a um povo).

     Outros povos que normalmente associamos aos totens são os indígenas que habitam a costa pacífica do noroeste da América do Norte. Aqui, pilares de madeira representam os totens e podem ter diversas finalidades, desde o culto dos antepassados até à partilha de uma história ou lenda.

     Ainda na América, mas desta feita mais a sul, os povos meso e sul-americanos deixaram-nos bastantes esculturas monumentais em pedra, muitas das quais relacionadas com as suas religiões. Para além disso, encontram-se ainda muitas estatuetas e máscaras de materiais preciosos como ouro ou jade.

     As religiões do nosso mundo são tão variadas como os povos que o habitam, mas, ainda assim, parece generalizado o uso da escultura como obra de arte sagrada. Mesmo as religiões que a ignoram – destacando-se o islamismo – fazem-no conscientemente, como forma de impedir a idolatria (o culto da imagem, ao invés do culto do que ela representa). A união entre a escultura e a religião foi e é extremamente importante como forma de obter testemunhos de culturas passadas e das suas crenças, para além de muitas delas nos espantarem pela sua genialidade ou imponência.

Marco Acúrcio

Publicado a 16 de julho de 2020

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